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NA MOSCA, MAS FORA DA MIRA

No tocante a Deus, professam conhecê-lo; entretanto, o negam por suas obras; é por isso que são abomináveis, desobedientes e reprovados para toda boa obra. Tito 1:16

Parece paradoxal o tema deste estudo. Ora, se o tiro foi na mosca, não pode estar fora do alvo. Ninguém pode acertar na mosca afastada da mira. O alvo, isto é, a mosca ou a mira são a mesma coisa. Como alguém pode atirar na mosca, mas fora da mira?

No reino de Deus o discurso e o curso da vida devem ser o mesmo. A profissão de fé e a vida de fé devem coincidir. O que eu digo precisa afinar-se com o que eu faço. Mas acontece, muitas vezes, que a minha fala não concorda com a minha prática. A teologia está certa, todavia as atitudes dizem o oposto. Vivemos hoje um momento histórico muito complicado. Sabemos que deve ser a verdade a única fonte que determina a conduta verdadeira, mas, infelizmente é sabido também que uma preleção correta não garante um viver exemplar. A história da igreja sempre mostrou este problema, mas agora a coisa piorou muito e a ortodoxia não consegue assegurar com mais segurança os feitos da ortopraxia ou da prática exata. O fato de alguém ser ortodoxo, isto é: correto na doutrina, não quer dizer que ele seja santo. Não estou usando o termo santo aqui como sinônimo de impecável ou perfeito como é empregado popularmente, mas como alguém separado por Deus e para Deus. Uma pessoa pode ser ortodoxa na doutrina e heterodoxa na prática. Exata na mensagem, mas destemperada na comunhão. Perfeita na pregação e um desastre no relacionamento.

Jesus ficou intrigado com certas pessoas que o consideravam como Senhor, porém não se mostravam dispostas a fazer o que ele ordenava. Por que me chamais Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando? Lucas 6:46. A homilia de muitos estudantes da Bíblia é impecável, mas a submissão é humilhante. A correção doutrinária não pode prescindir da elegância relacional e da obediência de coração. Um exegeta nos limites da graça tem que ser um exímio subordinado ao Senhor dos senhores. O requinte na fala não significa um caráter que nunca falha, mas também não denota um libertino que se libertou da ética. Impecabilidade é pecado rigoroso, contudo a hipocrisia é muito mais cruel. "Não há nada pior do que ser por fora aquilo que não se é por dentro". Segundo Jesus uma das piores desgraças que se abate sobre alguém é ser comparado com um sepulcro caiado: belo por fora e podre por dentro. A imagem de cordeiro inocente com a natureza de lobo é a mesma de um anjo que hospeda um demônio. Uma pregação verdadeira não é tudo. Ainda que careçamos da melhor hermenêutica a serviço da melhor exegese em beneficio da melhor homilética, mesmo assim, a mensagem requer um mensageiro compatível com a realidade do evangelho. Como dizia Campbell Morgan: "o pregador da cruz tem que ser um crucificado".

Jesus foi categórico com aqueles que o apelidavam de Senhor, mas não praticavam a vontade do seu Pai. Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Mateus 7:21. Aqui está claro que o acatamento não acompanhava a confissão. O melhor juízo crítico para avaliar uma vida espiritual não são os deslumbramentos, mas a submissão. Piedade nos lábios não é o mesmo que subordinação no íntimo. Para esquivar do erro na salvação pela obediência à lei, temos caído no erro grosseiro da salvação sem obediência ao Pai. Nem um filho de Deus pode ser subserviente, mas nenhum pode viver em indisciplina birrenta. Aba não tem filhos cabeçudos e intransigentes.

Mas, antes que alguém rebarbe, é bom salientar que a obediência no reino de Deus é mais do que um dever moral, é um dom da graça. O Pai não exige obediência de uma criatura rebelde, mas a requer de um filho que ele o capacitou para obedecer. A evidência de quem conhece a Deus é que essa pessoa é filha e o obedece voluntariamente. A sujeição que se origina na graça é o cumprimento de um filho que crê e nunca de um escravo que teme. Observância por receio não é obediência de filho. No amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor. 1João 4:18.

A pregação do evangelho tem que ser rigorosamente bíblica e os pregadores perfeitamente quebrantados. Sem o trabalho do lagar não há grãos fora da espiga. Sem a moagem dos grãos não há farinha para fazer o pão. O trigo precisa ser triturado até virar pó e o pecador crucificado na cruz com Cristo precisa chegar ao nada. A morte precede a ressurreição do mesmo modo que o esvaziamento à plenitude do Espírito Santo.

A vida cristã é vida de subtração do ego para abrir espaço ao governo soberano do Espírito Santo. Não eu, mas Cristo é a marca que identifica a vida espiritual autêntica. E isso significa uma vida de quebrantamento e submissão permanentes. Baxter foi incisivo: "uma pessoa cheia de si jamais poderá pregar verdadeiramente o Cristo que se esvaziou de si mesmo". Cristo e o egoísmo humano são inconciliáveis.

Não basta pregar a mensagem ortodoxa sobre os feitos da cruz de Cristo, é preciso que o pregador seja despenseiro da vida que traz os efeitos reais da morte com Cristo. Destarte, mansidão e humildade são destaques desta biografia que demonstra os sinais dos cravos. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Mateus 11:29.

Manso e humilde são atributos comunicáveis do Pastor às ovelhas. A mansidão é mais do que uma força controlada, é o poder administrado pelo amor. Uma pessoa mansa é aquela que tem a capacidade e a energia para reagir com ímpeto, mas o faz com brandura por causa de um amor eterno. É um leão feroz que reage como um cordeiro pacífico. Alguém disse que "mansidão é a marca registrada de uma pessoa valente e forte que foi vencida e dominada pelo Deus amorável".

O manso é mais do que um ser pacato. Há pessoas que são dóceis por temperamento, mas isto não significa mansidão. Também não confunda covardia com serenidade de espírito. Muitos agem com suavidade movida a temor e não a amor. Na mansidão, tanto o pleito como a réplica são conseqüências de um grande poder governado pela afeição da graça e do amor de Deus em Cristo. Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados, com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor. Efésios 4:1-2.

O amor é o único poder que é proporcional e adequado para neutralizar o abuso. A maior força do mundo é aquela que consegue paralisar a violência do ego. E nada, senão a mansidão de um coração amoroso é capaz de estacionar essa arrogância. A própria salvação da alma está focalizada na intervenção de um espírito manso ao receber a influência da palavra de Deus já disseminada em seu interior. Porque a ira do homem não produz a justiça de Deus. Portanto, despojando-vos de toda impureza e acúmulo de maldade, acolhei, com mansidão, a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma. Tiago 1:20-21.

A permanência na Videira é uma questão básica da mansidão espiritual. Ninguém consegue permanecer em Cristo sem a persistência da afetividade tranqüila que se nutre apenas em Cristo. A cata de inovações e a busca por originalidade são sintomas de um coração ansioso ou inquieto que não obtém tudo o que há de novo para a vida espiritual, somente em Cristo. "Tudo aquilo que a Videira possui pertence aos ramos".

Se a mansidão é a capacidade espiritual conferida àqueles que administram a vida na dependência tão-somente do Senhor, em total submissão, "a humildade é fazer justo juízo acerca de si próprio". Andrew Murray entendia que "a humildade... é simplesmente a percepção da completa nulidade". Ora, um ser mortal não pode se mostrar auto-suficiente. Humilhai-vos, portanto, sob a poderosa mão de Deus, para que ele, em tempo oportuno vos exalte, lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós. 1 Pedro 5:6-7.

O orgulho foi a base de lançamento do pecado e é a torre de projeção dos méritos pessoais desta raça soberba e elevada que pretende ser autônoma. Em contra partida, a humildade vem mostrar, segundo Sto. Agostinho, que "a suficiência dos meus méritos está em saber que os meus méritos nunca serão suficientes". Para prosseguir ainda no argumento de Murray eu preciso em humildade saber com clareza que, "o Deus que escolheu Cristo para ser a Videira foi também quem o capacitou completamente para operar toda a obra que, como Videira, Cristo deveria realizar".

Spurgeon definiu o humilde nestes termos: "quanto mais elevado estiver o homem na graça, menor ele será aos seus próprios olhos". O crescimento em humildade é também a arte de cavar poços, pois quanto mais profundo estiver escavacando, mais invisível aos olhos dos espectadores. A invisibilidade pública é a chave da comunhão secreta da vida espiritual verdadeira, uma vez que a seleta humildade não celebra a sua glória. A pregação do evangelho é Cristo Jesus e sua obra na cruz. A igreja primitiva tinha convicção desta mensagem. E todos os dias, no templo e de casa em casa, não cessavam de ensinar, e de pregar Jesus, o Cristo. Atos 5:42. Se conseguirmos pregar às pessoas somente a Cristo, e este crucificado, nós teremos pregado tudo o que elas precisam tanto para a salvação como para a santificação. Precisamos alinhar a pregação com a vida. Foi James Denney quem instigou este pensamento: "nenhum homem pode dar, ao mesmo tempo, a impressão de que é uma pessoa capaz e de que Cristo é poderoso para salvar". As duas posições são excludentes e não há possibilidade de alguém atirar na mosca encima da mira, se o ego não for crucificado juntamente com Cristo e não houver um levar deste morrer diariamente.

Mansidão, humildade, amor e submissão são sinais que evidenciam o caráter de Cristo na vida do cristão. A minha maior tentação é ser a luz e não a vela. Mas a luz do mundo é Cristo, enquanto a vela é consumida. João Batista veio para dar depoimento da luz. Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz, a saber: a verdadeira luz que, vinda ao mundo, ilumina a todo o homem. João 1:8-9.

João entendeu que era a candeia e que Cristo era o lume. Por isso convinha que Cristo resplandecesse e que ele, João, minguasse cada vez mais e desaparecesse. Esse encolhimento de visibilidade não é um rebaixamento de sua identidade. Ao contrário, João era um filho amado do Pai, mas a sua ênfase era que Cristo fosse glorificado e que ele, João, fosse apenas um instrumento desta glorificação. O ponto de equilíbrio da vida cristã autêntica é termos a nossa identificação apenas na pessoa e obra de Cristo. Mansidão sem humildade é uma utopia. Humildade sem submissão é impraticável. Submissão sem amor é despotismo. O amor de Deus promove a submissão voluntária que se manifesta através de uma vida interior mansa e humilde. O destaque do apóstolo Paulo resume o assunto da pontaria que acerta na mosca em cima do alvo: porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor, e a nós mesmos como vossos servos por amor de Jesus. 2Coríntios 4:5.

Por: Glenio Fonseca Paranaguá
27/01/2008

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